Uma cidade no seu limite
Leningrado é uma cidade situada às margens do Golfo da Finlândia (mar Báltico), no oeste do território soviético, antiga capital imperial da Rússia, quando então se chamava São Petersburgo. Cinco dias após a morte de Vladimir Lenine, em jan./1924, a cidade trocou de nome a fim de homenagear o líder do Partido Soviético, revolucionário que implantou o socialismo no país. Depois de Moscou é a cidade russa mais importante.
Em jun./1941 a Alemanha Nazista invadiu a Rússia, na famosa Operação Barbarossa, ocasião na qual a cidade tinha uma população de, aproximadamente, 3 milhões de habitantes. Hitler estava decidido a dar um golpe decisivo no moral dos soviéticos conquistando a "Cidade de Lenine". Durante exatos 872 dias os cidadãos sofreram um cerco onde pereceram mais de 1 milhão de civis e soldados, a grande maioria de fome, frio ou doenças. O horror foi de tamanha magnitude que há relatos de canibalismo e violação de túmulos recém enterrados em busca de algo para comer.
No planejamento militar da Barbarossa haviam três grandes Grupos de Exércitos: Sul (Marechal von Rundstedt), cujo objetivo era Kiev (capital da Ucrânia) e os campos petrolíferos do Cáucaso; Centro (Marechal von Bock), tendo Moscou como meta e Norte (Marechal von Leeb) que pretendia conquistar Leningrado. Este último era composto por dois Exércitos de Infantaria (18º sob comando do General Küchler e 16º com o General Busch na liderança) e um Grupo Panzer (4º comandado pelo General Hoepner). Vinte e três dias depois de deflagrada a ofensiva, von Leeb tinha conseguido avançar rapidamente através dos países bálticos até 250 km ao sul do seu objetivo, no rio Luga. A notícia da aproximação dos alemães causou pânico nos habitantes de Leningrado. O comandante da defesa da cidade, Marechal Voroshilov, rapidamente convocou milhares de civis para a construção acelerada de barreiras, trincheiras, obstáculos e fossos antitanques. Paralelamente milhares de operários se apresentaram, de forma voluntaria, para reforçar o Exército Vermelho. Devido à escassez de armas e instrutores apenas três divisões foram aproveitadas e, rapidamente, enviadas à linha de defesa. No início de agosto von Leeb redobrou os ataques contra os defensores no rio Luga e quebrou sua resistência. O veloz avanço das tropas alemães, que se seguiu, foi gradativamente conquistando todos os principais pontos de abastecimento (vias férreas e estradas) e comunicações da cidade, muito embora os soldados e milicianos soviéticos lutassem desesperadamente, até que no começo de setembro o cerco estava fechado. Para completar o desastre as tropas finlandesas, que lutavam ao lado dos alemães, avançaram pelo norte, no istmo da Carélia, e se estabeleceram a 40 km de Leningrado. No interior da cidade 3,5 milhões de habitantes e soldados ficaram isolados do restante do território russo. Na sequência as primeiras bombas começaram a cair sobre a sitiada cidade.
Quando tudo parecia apontar para a queda da grande metrópole, Hitler interveio e realocou o 4º Grupo Panzer ao Grupo de Exércitos Centro, que preparava-se para avançar sobre a capital soviética. Desta forma von Leeb ficou sem sua força de tanques para assaltar a cidade o que aumentou as dificuldades dos que tentavam tomá-la. Mas Hitler tinha seus planos para destruir Leningrado - ordenou que nenhum ataque direto fosse feito e sim o aperto do sitio para que a cidade sucumbisse, aos poucos, de fome sendo atormentada, constantemente, por ataques de artilharia e bombardeios aéreos. Pior que isso - ele não aceitava capitulação, pois, segundo seus próprios pensamentos, o problema de alimentar a população e sua sobrevivência não deveria ser resolvido pelos alemães. Desta forma começou a tragédia de Leningrado. Poucas cidades do mundo, na era moderna, passaram por tamanha desgraça.
O ditador soviético, Stalin, sem saber dos planos malignos que Hitler havia ordenado, enviou seu melhor oficial-general para socorrer - Marechal Georgy Zhukov. Este, trabalhando febrilmente, conseguiu, em poucos dias, reorganizar a defesa em torno da cidade, afastando o perigo de uma iminente invasão terrestre. Entretanto o problema do abastecimento tornava-se cada dia mais agudo. Somente existia um meio de comunicação para a vinda de mantimentos - o lago Ladoga (apelidado de "o caminho para a vida"). Diversas embarcações que tentavam atravessá-lo eram destruídas pelos ataques da Luftwaffe. Os poucos alimentos, combustíveis e munições que chegavam eram suficientes apenas para uma semana de consumo. A questão ia se tornando cada vez mais crítica e, pra piorar, com a chegada do rigoroso inverno, em novembro, o lago deixou de ser navegável. O abastecimento começou a ser feito por via aérea, mas os céus de Leningrado estavam repletos de aeronaves inimigas. A fome passou a fazer parte da vida dos habitantes matando muitos idosos e doentes. As autoridades estabeleceram um austero plano de racionamento o que aumentou em muito o número de vítimas.
Em novembro morreram 11 mil pessoas de fome e no mês seguinte a quantidade de vítimas por inanição subiu para mais de 52 mil. Medidas desesperadas foram implantadas como a evacuação aérea de habitantes e a permissão da travessia de civis à pé pelo lago Ladoga o que somente trouxe maior números de mortes. Mas a fome causa estranhos efeitos no homem - os cientistas e dietistas soviéticos, movidos pela necessidade extrema, deram asas a sua engenhosidade e os resultados parece que se tornaram um cardápio de um infernal banquete de bruxas: pão de celulose, sopa de cola, geléia de restos de rato e leite de algas marinhas. Mas, se não alimentavam, davam pelo menos uma sensação de momentânea satisfação. No dia de Natal de 1941, data sem muita importância no calendário russo, 3.700 leningradenses morreram de fome.
Em meados de dez./1941 e começo de jan./1942 as tropas soviéticas atacaram maciçamente as posições alemães próximas a cidade de Tikhvin, nas margens do Ladoga, empurrando-as para a outra margem do rio Volkhov. O estabelecimento desta nova linha de defesa, ao custo de pesadas baixas, não salvava Leningrado do cerco, mas abria uma vital via de comunicação, sem oposição terrestre, pois aquela cidade era importante terminal ferroviário o que trazia grande alívio para a população.
Mesmo assim muitos moradores iriam morrer de fome até que o transporte de mantimentos para a cidade se estabelecesse de forma definitiva. Em fins de jan./1942 as autoridades deram prosseguimento a evacuação maciça dos sobreviventes, transportando mais de 1 milhão de habitantes para fora do cerco até o fim daquele ano. Idosos, doentes e crianças tinham prioridade. Além disso foi construído um oleoduto sob as águas do lago Ladoga e um cabo de transmissão de energia elétrica, o que permitiu a volta do funcionamento do transporte público (bondes) e das atividades industriais nos subúrbios da cidade. Desta forma, aos poucos, a situação do dia a dia foi melhorando.
As batalhas fora do cerco da cidade continuariam violentas entre o Exército Vermelho e as Wehrmacht, alternando vitórias e reveses em ambos os lados, contudo sem que o cerco à Leningrado fosse completamente eliminado. Durante todo o ano de 1942 ficou claro que as tropas alemães não tinham forças para destruir a cidade nem por terra e nem pelo céu, por outro lado também os soldados russos não conseguiam expulsar definitivamente o inimigo de suas trincheiras ao longo da linha de defesa. Mas esta situação foi se modificando na medida que o moral soviético aumentava por não sucumbir ao martírio que lhe estava sendo imposto. Some-se a isso a noticia chegada, em fev./1943, da rendição e destruição do 6º Exército Alemão na cidade de Stalingrado, onde as tropas soviéticas reverteram um cenário totalmente adverso numa esmagadora vitória. O espírito combativo do povo e do soldado russo estava no seu mais elevado grau. Mais do que nunca estava certo que os leningradenses jamais abandonariam sua cidade ao inimigo. Na verdade ali permaneceram umas 750 mil pessoas. Pelo menos 1 milhão de habitantes haviam morrido de fome e outros 1,3 milhão foram evacuados, alistados no Exército Vermelho ou mortos em bombardeios.
Somente após o fracasso da ofensiva alemã em Kursk (ago./1943), o Exército Vermelho conseguiu reunir as condições materiais e humanas ideais para lançar um grande contra-ataque no cerco à Leningrado. Os generais soviéticos fizeram de tudo para não revelar ao inimigo suas reais intenções, tanto simulando preparativos para ataques que nunca pretendiam realizar, como através de contra-espionagem. A real estratégia seria uma ofensiva partindo simultaneamente de dois pontos - do sul do Golfo da Finlândia para sudeste e a leste de Leningrado, em Volkhov e Novgorod, para sudoeste. Os dois ataques teriam apoio da esquadra do Báltico e estavam marcados para meados de jan./1944. O objetivo era nada menos que expulsar todas as forças do Grupo de Exércitos Norte para as fronteiras da Estônia e Letônia. Uma tarefa formidável.
Na noite de 13/01/1944 a força aérea russa bombardeou as posições fortificadas do inimigo ao sul do Golfo e deu início ao ataque. A velocidade da investida pegou os desmotivados alemães de surpresa fazendo com que perdessem as linhas de frente. Passados alguns dias as posições de artilharia germânicas foram rendidas depois de passarem mais de 2 anos despejando suas bombas sobre Leningrado. Mais de mil prisioneiros foram feitos e grande quantidade de equipamentos e munições foram capturadas. Mais que isso, três importantes centros ferroviários passaram, novamente, ao controle soviético, fazendo com que Moscou fosse novamente ligada a Leningrado por aquela via. A cidade finalmente estava livre do cerco imposto por 872 dias! Os moradores e soldados explodiram em festa.
Depois da guerra os patriotas da cidade, que restaram, reconstruíram Leningrado. A estação do metrô foi refeita. As escolas, a Universidade, as fábricas, as usinas hidroelétricas, os institutos de pesquisa, tudo foi posto de pé. Os palácios imperiais foram restaurados. As árvores dos jardins públicos, que haviam sido derrubadas para servir de aquecimento, e as 19 mil casas que foram destruídas, foram novamente erguidas.
A história de Leningrado não é a história de uma batalha da 2ª Guerra Mundial. É, antes de tudo, a história de um povo imbuído de coragem inquebrantável. Em 1991 a cidade voltou a se chamar São Petersburgo e hoje abriga uma população de quase 5 milhões de pessoas.
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